Os Bonecos de Barro

O trabalho é aquilo que implica, do ponto de vista humano, o fato de trabalhar: gestos, saber-fazer, um engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir às situações; é o poder de sentir, de pensar e de inventar, etc. [Dejours, Christophe, 2004]

 

Embora a vida não se resuma à esfera do trabalho – e, de fato, seja muito mais que isso – compreendemos que o trabalho possui um papel fundamental na vida do ser humano. Por este motivo, hoje compartilhamos um texto de Clarice Lispector, no qual ela retrata de modo belíssimo o sentimento de realização que uma atividade laboral – qualquer que seja – pode proporcionar ao homem.

É importante salientar, contudo, que a satisfação não se encontra na atividade por si mesma, mas na relação que o homem estabelece com aquilo que faz. Neste sentido, mais importante que a atividade que escolhemos exercer é o tipo de relação que estabelecemos com esta atividade, pois na medida em que optamos por fazer algo que corresponde ao nosso coração, maior a probabilidade de nos sentirmos realizados nisso.

Mas este é um assunto para uma nova conversa. Por hora, fiquemos com o texto da Clarice Lispector.

 

 [Por Clarice Lispector[i]]

 

Mas que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro, o que ninguém lhe ensinara.  Trabalhava numa pequena calçada de cimento em sombra, junto à última janela do porão. Quando queria com muita força ia pela estrada até ao rio. Numa de suas margens, escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém poderia desejar: branco, maleável, pastoso: frio. Só em pegá-lo, em sentir sua frescura delicada, alegrezinha e cega, aqueles pedaços timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia úmido quase ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada –  na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza. Com as mãos livres, então, cuidadosamente galgava a margem até a extensão plana . No pequeno pátio de cimento depunha a sua riqueza. Misturava o barro à água, as pálpebras frementes de atenção – concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma proporção exata e nervosa de barro e de água numa sabedoria que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada. Conseguia uma matéria clara e tenra de onde se poderia modelar um mundo.

Como, como explicar o milagre… Amedrontava-se pensativa. Nada dizia, não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer, se… quiser me impedirá de fazer a massa de barro… se quiser pode me pisar, me estragar tudo, eu sei que não sou nada… era menos que uma visão, era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permita conseguir tanto no barro e na água e diante de quem ela devia humilhar-se com seriedade . Agradecia-lhe com uma alegria difícil, frágil e tensa, sentia em… alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados – mas o que não se vê de olhos fechados tem uma existência e uma força, como o escuro, como a ausência, compreendia-se ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si própria, passaria inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la, como uma criança, como uma pessoa.

 Depois de obtida a matéria, numa queda de cansaço ela poderia perder a vontade de fazer bonecos. Então ia vivendo para a frente como uma menina.

 

Um dia porém sentia seu corpo aberto e fino e no fundo uma serenidade que não se podia conter, ora se desconhecendo ora respirando em alegria, as coisas incompletas. Ela mesma insone como luz –  esgazeada, fugaz, vazia, mas no fundo um ardor que era vontade de guiar-se a uma só coisa, um interesse que fazia o coração acelerar-se sem ritmo… de súbito como era vago viver. Tudo isso também poderia passar, a noite caindo subitamente, a escuridão sobre o dia morno. Mas às vezes lembrava-se do barro molhado, corria assustada para o pátio: mergulhava os dedos naquela mistura fria, muda e constante como uma espera, amassava, amassava, aos poucas ia extraindo formas. Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda salpicada de areia lavada e faiscante, uma flor murcha com sol por cima, o cemitério do Brejo Alto, uma moça olhando… Muito mais, muito mais. Pequenas formas que nada significavam mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às vezes altas como uma árvore alta, mas não eram árvores, não eram nada…Ás vezes como um riozinho correndo, mas não eram rio, não eram nada… Às vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada mas sério e cansado com uma pessoa. Um trabalho que jamais acabaria, isso era o que de mais bonito e cuidadoso já soubera; pois se ela podia fazer o que existia e o que não existia!

  Depois de prontos os bonecos eram colocados ao sol. Ninguém lhe ensinara mas ela os depositava nas manchas de sol no chão, manchas sem vento nem ardor. O barro secava mansamente, conservava o tom claro, não enrugava, não rachava. Mesmo quando seco parecia delicado, evanescente e úmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro pastoso. As figurinhas assim pareciam rápidas quase como se fossem se movimentar. Olhava para o boneco imóvel. Por amor ou apenas prosseguindo o trabalho fechava os olhos e se concentrava numa força viva e luminosa da qualidade do perigo e da esperança, numa força de seda que lhe percorria o corpo celeremente com um impulso que se destinava à figura. Quando enfim se abandonava, seu fresco e cansado bem-estar vinha de que ela podia enviar embora não soubesse o quê…  talvez. Sim, ela às vezes possuía um gosto dentro do corpo, um gosto alto e angustiante que tremia entre a força e o cansaço –  era um pensamento como sons ouvidos, uma cor no coração. Antes que ele se dissolvesse maciamente rápido no seu ar interior, para sempre fugitivo, ela tocava com os dedos num objeto, entregando. E quando queria dizer algo que vinha tênue, obscuro e liso e isso poderia ser perigoso – encostava um dedo apenas, um dedo pálido, polido e transparente – um dedo trêmulo de direção. No mais fino e doido do seu sentimento ela pensava: vou ser feliz. Na verdade o era nesse instante e se em vez de pensar “sou feliz” procurava o futuro era porque obscuramente escolhia um movimento para a frente que servisse de forma à sua sensação.

 

Assim juntara uma procissão de coisas miúdas. Quedavam-se quase despercebidas no seu quarto. Eram bonecos magrinhos e altos como ela mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco surpreendidos – às vezes pareciam um homem coxo rindo! Mesmo suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade vigilante como a de um santo. E pareciam inclinar-se para quem as olhava como os santos. Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira e seu amor e sua surpresa não diminuiriam.

 — Bonito… bonito como uma coisinha molhada! dizia excedendo-se num ímpeto doce.

 Observava: mesmo bem acabado eles eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas vagamente pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento. Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por eles mesmos, se isso fosse possível.

 

E as dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos, pelo efeito do barro claro, eram pálidos. Se queria sombreá-los não o conseguia com o auxílio da cor e por força dessa deficiência aprendeu a dar-lhes sombra ainda por meio de forma. Depois inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino traço de barro conseguia um vago colorido, triste e assustado, quase inteiramente morto. Misturando barro à terra obtinha ainda outro material menos plástico, porém mais severo e solene. Mas como fazer o céu? Nem começar podia. Não queria nuvens –  o que poderia obter pelo menos grosseiramente –  mas o céu, o céu mesmo, com sua inexistência, cor solta, ausência de cor. Descobriu que precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpadas, sentidas, talvez apenas vistas, quem sabe. Compreendeu que isso se conseguiria com tintas.

 E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse – ela se contentava em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina e tranquila.

 

REFERÊNCIAS

DEJOURS, Christophe. Subjetividade, trabalho e ação. Revista produção, v. 14, n. 3, p. 27-34, Set./Dez de 2004.

LISPECTOR, Clarice. O Lustre (romance), 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 50-55

 

NOTAS


[i] Retiramos o texto de Clarice diretamente da obra impressa e citada nas referências. Sabemos que existem outras versões disponíveis correntemente. Optamos, contudo, por transcrever a do livro. Já as imagens foram retiradas do site http://www.releituras.com/i_bonecos_clispector.asp. De lá copiamos as notas que se seguem, ipsi literis:

“Não há identificação do autor das ilustrações, que serão talvez de Ladjane que, com Esmaragdo Marroquim, assume a direção da revista. Declinam-se também M.Bandeira, José Cláudio e Karl Plattner como ilustradores do exemplar utilizado”.