O Rio que corre em nós

Multnomah Falls - Julie Engel - sxc.hu

Um rio advém de uma fonte que brota inicialmente pequena, límpida e frágil. No entanto, na medida em que corre seu curso, o rio toma corpo, outras águas se misturam a ele e parte dele se mistura a outros rios. Ora se divide, formando diferentes braços em distintas direções que irão se fundir novamente mais a frente no percurso, ora se alarga para receber em seu leito outros rios e se tornar ainda maior e mais forte. Seu curso por vezes é alterado com o passar do tempo, às vezes pela ação própria da natureza, outras vezes por intervenção humana. Todavia, o rio conhece o seu caminho e que seu destino é o mar.

Assim também somos nós os seres humanos. Ao nascermos somos pequenos, frágeis, com pouco conhecimento acerca do mundo e de nós mesmos, mas ao longo do nosso desenvolvimento agregamos informações, vivências, fatos e conhecimentos que contribuem para a nossa formação como pessoas. Às vezes mudamos o curso da nossa vida, outras vezes essas mudanças acontecem por interferência do meio em que vivemos. A verdade é que na medida em que progredimos em nosso crescimento pessoal, nossas características particulares tomam força – e é por isso que nossos amigos e familiares podem dizer se determinados aspectos dizem respeito ou não à nossa pessoa, porque eles reconhecem na nossa estrutura algo que nos distingue, algo que nos torna reconhecíveis.

 

Colored chalk - S. Schleicher - retirada de sxc.hu

 

Por vezes lidamos com o processo de formação da pessoa com uma percepção um pouco desencontrada, como se fôssemos uma tábula rasa, usurpando e extrapolando aquilo que John Locke e outros empiristas propuseram. Às vezes pensamos que,as coisas vão se desaguando em nós, vamos acumulando acontecimentos, conhecimentos, fatos, vivências e assim por diante, como se não tivéssemos implicação neste processo. Contudo, diferentemente do rio, temos consciência de nosso percurso – ou deveríamos ter –, podemos nos posicionar frente o mesmo e, se necessário for, mudá-lo.  Não somos receptáculos inertes nos quais outras pessoas depositam as mais variadas informações e só.  Somos naturalmente seres agentes, atuamos no meio sempre respondendo aos fatos que vivenciamos e às informações que recebemos.

Somos formados por meio da nossa interação com o mundo, com as pessoas, com as informações e até mesmo com as nossas particularidades. O que nos forma enquanto seres humanos não são apenas as águas depositadas por outros no leito do nosso ser, nem tão pouco somente a nossa estrutura originária ou a nossa predisposição genética. O que nos forma são as respostas que damos na medida em que caminhamos. Porque podemos ter uma predisposição genética para desenvolvermos determinado tipo de doença, por exemplo, mas isso não significa que devamos aceitar nossa condição e ignorar que podemos ter determinados cuidados a fim de retardar, amenizar ou mesmo evitar o desenvolvimento desta doença. Do mesmo modo que o fato de termos uma estrutura mais impulsiva, por exemplo, não significa que estamos fadados ao descontrole, pelo contrário, conhecer nossas características pode contribuir para que tomemos algumas precauções, tenhamos mais cuidado e, quem sabe, procuremos ajuda especializada para lidarmos com tais aspectos.

 

Imagem adaptada de "The end of the river" - ShadowRave - retirada de sxc.hu

 

Cabe pontuar que não falamos aqui de uma postura de simples reatividade diante da vida, a vida age e daí agimos, sempre respondendo, sem critério por vezes. Apontamos a necessidade de respostas pessoais que levem em consideração uma análise da realidade em comparação consigo mesmo.  É este tipo de resposta que forma o ser humano: ter a sua pessoalidade em relacionamento estreito e contínuo com as solicitações do meio.

Há ainda outro ponto muito importante: somos moldados em nossa interação com o mundo, mas o mundo também é constituído na medida em que agimos sobre ele.  Ou seja, assim como o rio recebe águas de outros rios e deposita suas águas em outros leitos. o caminho por onde passa é também modificado pela força de sua vazão, seja ela qual for. As nossas respostas, as nossas ações, as posições que tomamos diante da vida formam a nossa pessoa, mas também modificam o ambiente, o tornam diferente do que era antes da nossa ação.

Sabemos que a terra que margeia o leito de um rio límpido e despoluído tende a ser mais fértil e frutífera, justamente porque bebe das águas deste rio. Do mesmo modo que as margens de rios poluídos tornam-se tão pobres e desvitalizadas quanto o rio que corre entre elas. Neste sentido, se prosseguirmos em nossa analogia, verificamos que também o homem que vive, que se relaciona e que age sobre o mundo tem em suas mãos a possibilidade de modificar o meio em que se encontra.

 

River reflecting golden sunlight - Mihai Tamasila - retirada de sxc.hu

 

É importante colocar que não estamos falando de uma mera filosofia ou de uma ideologia de que “podemos construir um mundo melhor”, mas do fato de que o homem tem em suas mãos a responsabilidade, ou seja, a habilidade de responder às solicitações do ambiente com a consciência de que seus atos podem afirmar ou negar aquilo que ele é. E à medida que afirma ou nega a si mesmo, o homem forma a si mesmo e contribui para o processo de formação de outras pessoas e do próprio meio em que vive. Esta visão do processo de formação da pessoa vai ao encontro do que afirmamos anteriormente: o homem não é um recipiente inerte onde são depositadas milhares de coisas, o homem é um ser agente, o homem tem responsabilidade no próprio processo de formação, bem como na constituição do mundo.

Obviamente o processo de formação da pessoa é lento, contínuo e infindo. De modo algum esperamos que todas as pessoas cheguem à determinada idade plenamente capazes de compreender a responsabilidade inerente a cada ser. Contudo, esperamos sim que juntamente com o crescimento e desenvolvimento físico, as pessoas também amadureçam e se tornem cada vez mais hábeis para agir conscientes de si, do outro e do mundo. Tal qual o rio que corre em direção ao mar, somos nós que caminhamos, que respondemos, que agimos e que vivemos. E no processo de formação da nossa pessoa não podemos manter uma postura passiva, na expectativa de que o mundo nos faça ser aquilo para o qual nascemos, mas devemos nos empenhar em sermos em ato cada vez mais nós mesmos e manter o respeito devido àqueles com os quais nos relacionamos e à nossa pessoa.

 

NOTA: Tomamos a liberdade de nos valermos de uma alegoria utilizada por Umberto Eco em seu livro O nome da rosa para ilustrar nosso pensamento a respeito do processo de formação da pessoa. Cabe pontuar que no livro esta alegoria é usada em outro contexto para explicar outro conteúdo. No entanto, a mesma nos serviu de inspiração para pensar o tema da formação da pessoa e nos pareceu bastante apropriada para esboçar nossa linha de raciocínio.

 

REFERÊNCIAS

Luigi Giusssani. O senso religioso. Editora Universa.

 Luigi Giussani. Educar é um risco. Editora Edusc.

Martin Buber. Eu e tu. Editora Centauro.

Edith Stein. Obras completas, v.III. Editora Monte Carmelo.

Martin Buber. Sobre comunidade. Editora Perspectiva.

M. Bersanelli & M. Gargantini. Sólo el assombro conoce. Editora Encuentro.

M. Blondel. La acción. Editora BAC.

Umberto Eco. O nome da rosa. Editora Nova Fronteira.